A DEVOÇÃO DAS DORES DE NOSSA SENHORA NA BASÍLICA DE NOSSA SENHORA DO PILAR
Carlos José Aparecido de Oliveira
O Setenário das Dores de Nossa Senhora, celebrado na Basílica de Nossa Senhora do Pilar em Ouro Preto, tem origem na segunda metade do século XVIII, seguindo uma tradição lusitana. Esta cerimônia é parte do elenco de nossa rica cultura imaterial e litúrgica da Semana Santa, expressão de fé e religiosidade de nosso povo.
Às paróquias se obrigavam a realização da Semana Santa como solenidade de fundo sacramental dos mistérios da salvação. Contudo as irmandades, no início do século XVIII, tratavam também de fazê-la, ainda que parcialmente, no recinto da Igreja – Matriz e, posteriormente, nas capelas filiadas, não se contentando apenas com as cerimônias paralitúrgicas. A título de exemplificação a Ordem Terceira do Carmo promovia na segunda metade do século XVIII atos internos, tendo adquirido acervo completo para as cerimônias da Semana Santa[1]. Nos altares da nave, instalam as imagens do Cristo compondo a peregrinação iconográfica do Calvário.
É fato que a Semana Santa inaugurava um tempo realmente excepcional, de verdadeira suspensão da vida ordinária para toda sociedade; tempo próprio para interiorização e exteriorização; tempo de penitência e convívio para o fortalecimento da fé a partir da atualização da obra salvífica de nosso Senhor Jesus Cristo.
No início do século XVIII as Irmandades do Santíssimo, em praticamente todas as Vilas das Minas Gerais, tinham a função de promover a Semana Santa, contemplando também atividades religiosas no período da quaresma[2]. Na Matriz do Pilar, a partir de 1712, encontramos registros de despesas que a Irmandade do Santíssimo faz para a promoção da Semana Maior dividindo o montante dos gastos entre os irmãos e em dezoito partes: três cabiam ao provedor, três rateadas entre o tesoureiro e o escrivão e as restantes entre os doze “mordomos de mesa ou definidores”. A despesa conforme o grau hierárquico era na verdade um investimento, pois resultava em prestígio para os membros da Mesa Diretora. Os gastos mais comuns eram aplicados para a contratação de músicos, dos sacerdotes para os sermões (Mandato, Paixão, Soledade e Páscoa), para a cera (velas), tochas, turíbulo e naveta, pálio franjado de ouro, armações efêmeras indispensáveis aos ritos e amêndoas para os anjinhos nas procissões. Faziam as cerimônias da Crucificação e do Descendimento, a Procissão do Enterro e, ainda, a confecção do sepulcro muito esmerado na igreja. Para completar o acervo artístico da Paixão, a irmandade possuía painéis com os quais revestia os altares para o convencional e bíblico desnudamento. Em 1713, pagou o feitio da imagem do Descendimento e, em 1714, o esquife para o Senhor morto, escada e cravos e, para Nossa Senhora, alfaias diversas e toalhas para as cerimônias e altar.
Não obstante as dívidas, a Irmandade do Santíssimo continuou aprimorando seu acervo da Paixão, conforme consta no Livro de Inventários (1718/1802), adquirindo em 1735 a imagem do Cristo Ressuscitado com seu estandarte e resplendor de prata e em 1744 um “candeeiro das trevas pintado de preto” e mais setenta tochas.
A partir de 1715, a responsabilidade para a administração da Quaresma e Semana Santa passou a ser dividida com a Irmandade do Senhor dos Passos que, com seus recursos, contratou a fatura do altar da nave, a imagem dos Passos e a sala do Consistório dos Passos, edificada em frente ao Batistério. Ao longo do século XVIII, esta irmandade promoveu a construção dos “passinhos” e adquiriu um complexo acervo para aplicação nos atos litúrgicos e paralitúrgicos. Ainda assim recebe da Irmandade do Santíssimo, por empréstimo, a imagem do Senhor Morto com seu esquife e a imagem do Ressuscitado[3]. Nesta mesma época a imagem das Dores é parte do conjunto de imagens do Altar de São Miguel compondo o quadro do calvário ali instalado. No ano de 1747, encontramos a menção a “hua emaji da Senhora das Angustias com diadema e espadinha de prata”[4] que tinha lugar no altar de São Miguel. Algum tempo depois ela é colocada no altar dos Passos[5].
Já no século XIX, sem uma data precisa[6] é autorizada a criação da Irmandade de Nossa Senhora das Dores ocupando com seu altar a Sala do Consistório e para lá é transferida a imagem da Virgem Dolorosa. A inexistência de documentos importantes como o Livro de Termos e Deliberações e o Livro de Compromisso dificultam maiores informações da atuação desta irmandade na igreja Basílica de Nossa Senhora do Pilar ao longo do século XVIII.
A IMAGEM DE NOSSA SENHORA DAS DORES E O SETENÁRIO DAS DORES
A imagem da Senhora das Dores é de roca. O termo “Roca” foi utilizado para definir uma categoria de imaginária encontrada no Brasil e Portugal e de uso processional. Sua estrutura é simplificada e o corpo é formado por ripas com a função de lhe dar forma e diminuição do peso, ficando esta estrutura escondida quando recebe as vestes. O tratamento esmerado de talha e policromia ficam restritos às mãos, pés e cabeça. Podem receber olhos de vidro e cabeleira natural. A Senhora das Dores do Pilar tem ainda, lágrimas de cristal e articulações nos braços.
Em Ouro Preto, nas duas mais antigas paróquias, esta devoção se consolidou como parte do culto da Semana Santa. Na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, a Irmandade surgiu no interior da Igreja Matriz em 1770, obtendo licença para benzer a ermida primitiva em 1777. Em 1785, ela comprou em Braga a imagem da Virgem Dolorosa. As duas imagens de Ouro Preto são utilizadas alternadamente, a cada ano, nas procissões do Depósito,
Encontro e Enterro. Diferentes uma da outra, a força estética das imagens sugere, no meio popular, interpretações diversas do belo e do feio, do triste e do alegre. A imagem do Pilar é exemplo de uma dor contida, predominando uma delicadeza sobre sua força e a doçura sobre o drama. A imagem do Antônio Dias é expressão de uma dor compulsiva e forte, fortalecida por um choro acentuado e pela boca entreaberta.
Coube a Irmandade dos Passos o patrocínio do Setenário e a sua realização em seu altar. Em algum momento a imagem é colocada no altar de Nossa Senhora da Conceição e, neste local, passam a fazer a festa de Setembro e o Setenário no tempo da Quaresma. Em nosso entendimento a Irmandade de Nossa Senhora da Conceição não conseguiu se estruturar em corpo de comunidade ficando seu altar alheio às vontades e necessidades das Irmandades do Santíssimo e do Senhor dos Passos. Hoje a imagem da Conceição encontra-se recolhida no Museu de Arte Sacra ficando Nossa Senhora das Dores em definitivo no altar da nave.
Para o Setenário muitas despesas foram absorvidas pelas Irmandades do Santíssimo e do Senhor dos Passos no século XVIII e no XIX pela Irmandade das Dores. Verificamos nos livros pagamentos realizados para compra de amêndoas, alfaias, música e orquestra, sermão e uma série de serviços necessários para a sua celebração. No Livro de Inventário da Irmandade, além da imagem das Dores, a imagem de São Sebastião, do Anjo da Guarda (em condições imprestáveis), tem registros também da imagem do Menino Jesus com resplendor, três sacras para missa, Bentinho de Ouro, Capa e Túnica bordada a ouro, duas vestes brancas bordadas, cordão para beijar e espada de prata. Para garantia destas despesas, os “irmãos das dores” pagavam de sua entrada uma “Jóia” de diferentes valores e de acordo com a função do irmão ou promessa.
O texto mais antigo do Setenário, ainda encontrado em nossos arquivos, foi impresso em Lisboa em 1785 com todas as licenças necessárias da “real mesa e privilégio real” sob o título: “Gemidos da Mãe de Deos afflicta ou Estímulos de Compaixão das suas Dores” pelo Padre Theodoro de Almeida. Este mesmo texto ainda é utilizado como forma de resguardar esta tradição imaterial de nossa cultura e história. Além disso, não devemos esquecer-nos do rico repertório musical escrito para esta cerimônia, hoje, objeto de estudo de especialistas em música colonial brasileira. Diferente de muitas outras cerimônias, ela é iniciada por um “Minueto” instrumental que serve de fundo para o cortejo dos irmãos, celebrante e diáconos. Ao longo das sete sextas feiras, ladainhas diferentes são cantadas, nos remetendo ao texto bíblico da via dolorosa de Nossa Senhora. Compositores importantes que passaram pelo coro do Pilar produziram um repertório único e singular, específico para o Setenário do Pilar[7]: Jerônimo de Souza Lobo autor do “O Vos Ommes”, Plorans Ploravit, Defecit in Dolore, Vide Domine e Salve Virgem Dolorosa (Jaculatória)”; Padre João de Deus de Castro Lobo, autor de “Plorans Ploravit e a Ladainha”; Martiliano Ribeiro Basto, autor do “Stabat Mater”; Antônio Lopes Serino, autor de outra “Ladainha” e Gioachino Antônio Rossini, autor do “Inflamatus et ascensus” . À exceção de Rossini, todos os outros são compositores ouro-pretanos e mineiros.
Ao celebrarmos as dores de Maria, recordamos todo o seu sofrimento, protegendo seu Filho, na infância, das mãos dos poderosos e, mais tarde, acompanhando-O até a morte. Depois das dores, Maria foi recompensada com a alegria da Ressurreição de Cristo. Ouro Preto ainda guarda este símbolo de veneração à Mãe de Deus. O ritual do Setenário, aqui apresentado, traduz-se num esforço para não deixar cair no vazio este bem tão precioso para a história de Ouro Preto, reafirmação de nossa religiosidade e vivência mais plena da fé, à luz da devoção à Virgem Maria.
Que a Imaculada Conceição das Dores, Senhora do Pilar, ante os sofrimentos espirituais, físicos e emocionais que, por vezes, trazemos, imprima em nossa alma o Cristo da Fé para que tenhamos vida e vida em abundância (Jo 10,10).
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[1] O inventário de bens móveis realizado no ano de 1984 foram identificados um acervo completo de alfaias próprias para as cerimônias do Tríduo Pascal além do Pálio Roxo de chuvas douradas e Varas, Senhor Morto e Esquife.
[2] “Na primeira dominga da Quaresma de tarde, se fará uma Procissão da Penitência com toda a modéstia e asseio pelas ruas públicas da cidade, levando o nosso Reverendo Comissário o Santo Lenho, debaixo do Pálio. E nas mais domingas, logo depois das sete horas da noite, se ajuntarão todos os irmãos na nossa capela, com assistência do nosso reverendo comoissário, o qual lhes fará uma breve prática, e no fim dela continuarão a fazer aqueles atos de penitência e humildade, que cada um lhe pedir a sua devoção; cujo exercício não excederá o tempo de duas horas, para dar lugar a saírem a visitar os Santos Passos do Senhor”. Livro de Compromisso da Confraria do Cordão de São Francisco, 1760, cap. V.
[3] Arquivo Paróquia do Pilar/Acervo Irmandade do Santíssimo Sacramento, Códice nº 213, Livro de Inventários da irmandade do Santíssimo Sacramento, Ano de 1718/1802.
[4] Arquivo Paróquia do Pilar/Acervo Irmandade de São Miguel e Almas, Códice nº 16, Livro de Eleições, Posses, Promessas e Determinações, Inventários e Receita e Despesa da Irmandade de São Miguel e Almas, Ano de 1712/1835.
[5] BURTON,Richard Francis, Sir. Viagem do rio de Janeiro a Morro Velho. Ed. Itatiaia, São Paulo, 1975, p.295/299.
[6] O acervo documental da Irmandade de Nossa Senhora das Dores se resume em quatro livros: De Receita e Despesa (1897/1925), Eleições (1870), Inventário (1901/1902) e Receita e Despesa (1896/1925).
[7] Arquivo Paróquia do Pilar/Acervo de Música da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto.