Pe Adilson Luiz Umbelino Couto
Pároco e Reitor da Basílica de Nossa Senhora do Pilar
Revmo Pe Edmar José da Silva, pároco e reitor do Santuário de Nossa Senhora da Conceição. Queridos irmãos e irmãs que nos acompanham pelos meios de comunicação e mídias sociais.
Hoje nos reunimos para fazermos memória do encontro de Nosso Senhor Jesus Cristo (o Bom Jesus dos Passos) com sua mãe, a Virgem Maria das Dores no caminho do calvário. Encontro de amor e dor. Encontro de Redenção! Encontro que nos incentiva à aprendizagem do amor verdadeiro na busca do sentido redentor do sofrimento e da cruz. Encontro que nos leva a redimensionar nosso relacionamento com Deus, com o próximo e conosco mesmos. Portanto encontro de Reconciliação que nos faz superar a violência e viver a verdadeira fraternidade, por meio do diálogo, que é sempre compromisso de amor.
Invoquemos o Espírito Santo para que este momento celebrativo, em hora tão singular da história por consequências da pandemia, nos ajude no recolhimento em oração e sejamos contemplativos da força da salvação que vence toda dor e sofrimento. A forma de realizarmos esta cerimônia na semana santa, neste ano, bem como ano passado, é um indicativo que estamos nos cuidando para que o vírus não se transmita mais e mais. Sendo assim, este ritual, que desde uma antiga tradição, acontece na Praça central de nossa histórica Ouro Preto, hoje se dá no interior desta bela Igreja de São Francisco de Assis e chega, naturalmente, a tantos lares e pessoas por meio da transmissão ao vivo nos meios de comunicação social.
Estamos com Jesus em sua via crucis. Nesta hora, irmãos e irmãs, queremos meditar o significado da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Jesus tomou a cruz sobre si e saiu para o lugar chamado “Calvário”, em hebraico “Gólgota”. Ali o crucificaram. Conduzem à morte, justamente o Autor da vida! Mas sua paixão, que tinha por meta a nossa salvação, acabaria por ter – por virtude divina e graças a um designío providencial que supera em muito a nossa compreensão – um resultado oposto, diferente do que esperavam os judeus. Na realidade, a paixão de Cristo era algo assim como um laço estendido ao poder da morte, visto que a morte do Senhor era o princípio e a fonte da incorruptibilidade e da novidade da vida.
Podemos dizer que a encarnação do Verbo chega ao seu ponto culminante na história da salvação. Trata-se, portanto, de um mistério doloroso e glorioso da Paixão, morte e ressurreição do Senhor. O sofrimento e a morte do Filho de Deus sublinham o extremo realismo da sua encarnação. Ele recapitula em si a inteira realidade humana, sendo transformado de invisível em visível, de impassível em passível (sofredor), de imortal em homem mortal. Na sua paixão e morte se completam assim o escândalo da encarnação, como diz São Paulo: “Nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os pagãos” (1Cor 1,23).
A cruz constitui a dura rocha que sustenta a fé cristã. É a cruz a paradoxal e problemática identidade cristã nos confrontos das outras religiões. Jesus, que havia proclamado o reino de Deus, pareceu estar abandonado pelo Deus do Reino que ele anunciava. Aquele que tinha superado a lei, foi rejeitado em nome desta lei. Aquele que tinha ajudado os outros a curar e libertar das potências demoníacas, morreu sem ser ajudado e nem defendido por ninguém. Aquele que tinha sempre operado como benfeitor do seu próximo, foi condenado a morrer como um malfeitor numa cruz em meio a dois ladrões. Aquele que tinha feito da sua vida um evento unicamente religioso, expiró fora da cidade santa e do seu templo.
Como diz São Cirilo de Alexandria, padre da Igreja do século V, “Cristo apesar de sua natureza divina e sendo por direito igual a Deus Pai, não se prevaleceu de sua divina condição, mas humilhou-se até submeter-se à morte e morte de cruz. Realmente, sua paixão salutar abateu os principados e triunfou sobre os dominadores deste mundo e deste século, libertou a todos da tirania do diabo, e nos reconduziu a Deus. Suas chagas nos curaram e, carregado com os nossos pecados, subiu ao lenho; e deste modo, enquanto ele morre, nos sustenta na vida, e sua paixão se tornou a nossa segurança e muro de defesa. Aquele que nos resgatou da condenação da lei, nos socorre quando somos tentados. E para consagrar ao povo com seu próprio sangue, morreu fora da cidade”[1].
Neste tempo de incertezas, dúvidas, inseguranças, violências, inquietações e crises de todos os níveis, proclamamos que a Paixão de Cristo, sua preciosa cruz e suas mãos perfuradas significam segurança para aqueles que creem Nele. Por isso ele diz acertadamente: minhas ovelhas escutam minha voz e me seguem, e eu lhes dou a vida eterna. E também: Ninguém pode arrebatá-las da mão de meu Pai. E isto justamente, porque vivem à sombra do Onipotente, protegidas pelo auxílio divino como em uma torre fortificada.
Nesta hora, em que contemplamos o encontro de Jesus com sua mãe no caminho calvário, queremos ter presente nossa íntima união com Cristo, o Filho de Deus, o Dom por excelência do Pai, dado a nós. Ele que anunciou o Reino e nos interpela a que o desejemos. Buscá-lo é já ter sido encontrado pelo Senhor, pois antes mesmo que o vislumbremos, o Senhor já se nos manifestou neste reino. O reino foi tudo para Jesus missionário e o é para o discípulo que deseja fazer caminho com Ele. Dispor-se para caminhar com Ele é, ao mesmo tempo, desafiador e repleto de encanto, pois com Ele não se está sozinho, por mais estranho e árduo que seja o caminho.
Caminhar com Jesus, segui-lo em nossa vida é deparar com a confissão de Pedro: “Tu és o Cristo…” e de igual modo ouvir dele: “Tu és Pedro…” (Mt 16, 16.18). Pois é no caminho que o conhecemos e somos conhecidos como Ele nos conhece. E, conhecendo-nos, confia-nos uma missão. Este tempo favorável que vivemos convida-nos a olhar para a vida do Filho e deixar-nos configurar com Ele. Nesta semana santa, buscar e encontrar o Reino é acolhê-lo em suas mais diversas manifestações, é estar no caminho certo. O passo seguinte é ter o coração em sintonia para fazer na vida o que for de sua santa vontade.
Jesus é o homem do encontro. No encontro com as pessoas, com os conflitos, com os momentos de alegria e com os riscos de sua missão, Jesus mostra-se vigor e coragem de ir além. Sua atitude de Mestre e sua atuação desencadeiam em seu povo uma crise, ou seja, Ele rompe com a “normalidade” das pessoas e se revela imprevisível e desconcertante. O ser humano tende a acomodar-se facilmente ao conhecido, deixando-se levar pela rotina que evita sobressaltos, o que lhe confere uma sensação de segurança e tranquilidade: “Para que e por que mudar…? E isso ocorre também com suas ideias, crenças, cosmovisões… Habituado a ver a realidade a partir de uma determinada perspectiva, custa-lhe abrir-se a outras percepções, novas ou desconhecidas. A crise, que Jesus introduz entre os seus, visa redimir o ser humano, isto é, tirá-lo de seu horizonte limitado e estreito para elevá-lo a um horizonte amplo, próprio de Deus. Com suas atitudes e palavras, Jesus gerou em seus ouvintes uma opção que levou a uma ruptura-decisiva pró ou contra ele. Ele veio provocar uma derradeira decisão das pessoas pró ou contra Deus, agora manifestado em sua pessoa, em seus gestos e em suas palavras. Ele não foi simplesmente a doce e mansa figura de Nazaré; foi alguém que tomou decisões fortes, teve palavras duras e não fugiu dos conflitos, porque no centro de sua vida e missão estava o compromisso com a vida, sobretudo dos mais pobres e excluídos. Olhando para Nosso Senhor, que tenhamos também esta coragem de se decidir por ele e traçar em nossas vidas todos estes encontros.
Hoje, como seguidores de Jesus, temos de crer firmemente que é possível um mundo diferente, uma cidade diferente, um país, uma sociedade diferente em que a fraternidade, a igualdade e a comunhão se façam realidade. Um mundo em que se respeitem os direitos de todas as pessoas, o direito à vida, e os direitos da mãe Terra, onde compartilhar seja o mais normal e natural.
Há pouco recebemos a encíclica do Papa Francisco Fratelli tutti que nos convida a novos percursos de um novo encontro. Diz o texto: “Novo encontro não significa voltar ao período anterior aos conflitos. Com o tempo, todos mudamos. A tribulação e os confrontos transformaram-nos. Além disso, já não há espaço para diplomacias vazias, dissimulações, discursos com duplo sentido, ocultamentos, bons modos que escondem a realidade. Os que se defrontaram duramente falam a partir da verdade, nua e crua. Precisam de aprender a cultivar uma memória penitencial, capaz de assumir o passado para libertar o futuro das próprias insatisfações, confusões ou projeções. Só da verdade histórica dos fatos poderá nascer o esforço perseverante e duradouro para se compreenderem mutuamente e tentar uma nova síntese para o bem de todos. De fato, ‘o processo de paz é um empenho que se prolonga no tempo. É um trabalho paciente de busca da verdade e da justiça, que honra a memória das vítimas e abre, passo a passo, para uma esperança comum, mais forte que a vingança’.
O árduo esforço por superar o que nos divide, sem perder a identidade de cada um, pressupõe que em todos permaneça vivo um sentimento basilar de pertença. Porque “a nossa sociedade ganha, quando cada pessoa, cada grupo social se sente verdadeiramente de casa. Numa família, os pais, os avós, os filhos são de casa; ninguém fica excluído. Se alguém tem uma dificuldade, mesmo grave, ainda que seja por culpa dele, os outros correm em sua ajuda, apoiam-no; a sua dor é de todos. (…) Nas famílias, todos contribuem para o projeto comum, todos trabalham para o bem comum, mas sem anular o indivíduo; pelo contrário, sustentam-no, promovem-no. Podem brigar entre si, mas há algo que não se move: este laço familiar. As brigas de família tornam-se reconciliações mais tarde. As alegrias e as penas de cada um são assumidas por todos. Isto sim é ser família! Oh, se pudéssemos conseguir ver o adversário político ou o vizinho de casa com os mesmos olhos com que vemos os filhos, esposas, maridos, pais ou mães, como seria bom![2]” Diz o Papa Francisco.
Neste momento, como dizia São João Paulo II, o convite é este: voltemos em direção a Cristo, Redentor do mundo. Para Ele queremos olhar, porque só n’Ele, Filho de Deus, está a salvação, renovando a afirmação de Pedro: “Para quem iremos nós, Senhor? Tu tens as palavras de vida eterna”[3].
Em Jesus Cristo, o mundo visível, criado por Deus para o homem — aquele mundo que, entrando nele o pecado, foi submetido à caducidade _ readquire novamente o vínculo originário com a mesma fonte divina da Sapiência e do Amor. Com efeito, “Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho unigénito”. Assim como no homem-Adão este vínculo foi quebrado, assim no Homem-Cristo foi de novo reatado.
Saibamos que os que seguem a Cristo estão também crucificados com ele: morrendo à sua antiga conduta, são introduzidos em uma vida nova conforme ao Evangelho: Por isso, dizia Paulo: os que são de Cristo Jesus, crucificaram sua carne com suas paixões e concupiscências. E novamente, como que falando de si, diz a todos: Na realidade, pela fé eu morri para a lei, a fim de viver para Deus. Estou crucificado com Cristo: Já não sou eu que vivo, mas Cristo vive em mim. E ainda, Cristo morreu pelos nossos pecados segundo as Escrituras (1Cor 15,3).
Queremos seguir Jesus em sua via sacra, e experimentar a mesma liberdade com a qual Jesus viveu sua entrega pela salvação da humanidade. Pois a liberdade com a qual ele vai ao encontro da morte deriva do desejo de fazer a vontade do Pai. É, de fato, o Pai que entrega o Filho por amor. Também a obediência de Jesus ao Pai é expressão de amor (Rm 5,19): “É preciso que o mundo saiba que eu amo o Pai e faço aquilo que o Pai me mandou fazer” (Jo 14,31). A relação entre Deus e o homem não é mais definida pela desobediência de Adão (Rm 5,12-19), mas da obediência de Jesus até a morte. E assim destrói os nossos pecados, tornando-nos justos e santos diante de Deus. Por amor ele assume o destino do homem até à morte: “Jesus sabendo que era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, amou os seus que estavam no mundo, e os amou até o fim” (Jo 13,1). E o que nós buscamos celebrar, nestes dias, através deste grande mistério, é o amor de Deus Pai e do Filho Jesus pela salvação de toda a humanidade. Aqui está a verdadeira motivação do sacrifício cruento de Jesus na cruz.
A oração de hoje, irmãos e irmãs, deve ser profundamente silenciosa: trata-se de acompanharmos Jesus no caminho em direção ao Gólgota e sua morte na cruz. Silenciar o corpo, a mente, o coração para contemplarmos a Paixão redentora do Senhor. No percurso solidário com Jesus e com os sofredores da história não encontramos o “Deus do poder”’ que se impõe, mas o “Deus do amor” que se expõe à maior das fragilidades, porque o amor significa admitir a possibilidade de ver-se recusado e rejeitado. Só na fragilidade do amor Deus manifesta sua força misericordiosa.
Diante da violência e do sofrimento Deus silencia, porque Ele se encontra junto às vítimas, não junto aos carrascos. Seu “silêncio”, porém, não é de tolerância, mas de amor compadecido e solidário. Amor que tudo pode, mas não pode reagir à violência com violência igual ou maior. E continua sem poder impedir que a Paixão de Jesus continue acontecendo hoje. A resposta de Deus ao sofrimento não é escrita com tinta, mas com o sangue, carne, sentimento, fragilidade.
Ao entrar no caminho da Paixão de Jesus, uma pergunta brota naturalmente: Onde está Deus em nossa experiência de sofrimento? Mas Deus desafia-nos a responder à sua própria pergunta: Onde está você no meu sofrimento? Ele revela, aos nossos olhos dolorosamente abertos, o mistério de sua própria presença em nosso sofrimento e morte dos seus filhos e filhas. É o Deus que se identifica com a dor do mundo, com a marginalização dos excluídos e com a desgraça de todos os miseráveis da terra. Não podemos chegar ao Deus de Jesus pelo caminho largo e fácil do poder e da razão, senão pela senda escarpada e dura da solidariedade e da loucura da cruz.
A questão determinante para nós cristãos está em buscar a Deus e crer na sua transcendência a partir da solidariedade com as vítimas, com os crucificados deste mundo e com os que necessitam de calor humano, compreensão, tolerância, companhia e carinho.
Partindo da mensagem evangélica, podemos concluir que o único “sofrimento” que Deus quer é o que brota da luta contra o sofrimento. Deus quer o sofrimento somente quando é consequência de uma convicção e de um modo de viver que não suporta que os outros sofram. Foi exatamente isso que aconteceu com Jesus. E por isso o crucificaram. Somente a força do amor, da misericórdia e da entrega, que se faz capaz, como em Jesus, de suportar a mais extrema das debilidades, pode transformar o mundo.
Irmãos e Irmãs, piedosamente, acompanhemos o momento tão aguardado do encontro das imagens do Senhor dos Passos e da Senhora das Dores. “Encontro de amor e de dor. Amor de tanta dor! Dor de tanto amor!” Devotamente deixemos que se aproximem estas sagradas imagens para nos ensinar a lição nunca suficientemente aprendida de que a vida é a arte do encontro, não obstante todos os desencontros da vida, desencontros no desamor. Silenciosamente procuremos nos envolver neste mistério do Deus que vem ao nosso encontro e que, por intermédio do profeta Isaías, nos exorta: “Buscai o Senhor enquanto ele se deixa encontrar; invocai-o, pois Ele está perto” (Is 55,6).
Contemplemos agora, irmãos e irmãs, a Imagem de Nossa Senhora das Dores. “E tens na mão, usado e nunca imundo, o pequenino lenço maternal, com que enxugas as lágrimas do mundo”. A iconografia barroca representa a Senhora das Dores trazendo na mão o pequenino lenço maternal que Maria usa não para enxugar as próprias lágrimas, mas as lágrimas que Jesus derramou por nós e, sobretudo, as lágrimas de todos os filhos e filhas que Ele lhe confiou ao pé da cruz, como em testamento espiritual. Comecemos a aproximar esta imagem para o encontro com o Bom Jesus dos Passos. E nesta hora, peçamos que a Consoladora dos aflitos venha enxugar as lágrimas de todos nós, que caminhamos “gemendo e chorando neste vale de lágrimas” dos desencontros, embates e lutas da vida. A Mãe das Dores vem ao encontro de Jesus e ao nosso encontro com sua ternura e compaixão para ensinar-nos a unir provações, crises e sofrimentos da vida à cruz redentora de seu divino Filho. Deixemos que Nossa Senhora enxugue nossas lágrimas, compartilhe conosco o bálsamo da bondade que se derrama do seu coração materno, bálsamo que alivia e cura, bálsamo que conforta e renova nossas esperanças diante das provações.
Diante de tantos sinais de morte, de desagregação, de violência, Nossa Senhora vem ao encontro da humanidade sofredora, para enxugar-lhe as lágrimas, apontar-lhe o caminho da conversão e convidar-lhe à solidariedade e ao compromisso na construção de um mundo melhor. Permitamos, irmãos e irmãs, que Maria nos ensine a combater todo tipo de violência e ameaça à integridade do ser humano. Permitamos que ela nos ajude a redescobrir que a segurança e o afeto são necessidades básicas para uma vida humana integrada e feliz.
Voltemo-nos, agora, para a contemplação do Senhor dos Passos, com a pesada cruz às costas. Na cruz do Bom Jesus dos Passos, a visão da fé nos leva a contemplar o amor maior que vence a violência, o pecado, a injustiça e que gera vida em abundância, trazendo à humanidade a salvação e paz. O Cristo da Paixão vem, hoje, nos animar a construir a utopia de um mundo reconciliado. Caminhando com Jesus queremos assumir a prática do perdão e da reconciliação.
Jesus Cristo mostrou que sua pregação não era da boca para fora. Cristo mostrou que era capaz de viver aquilo que ele dizia, aquilo que ele anunciava, aquilo que ele pregava. Mesmo no auge do seu sofrimento na cruz, não saiu da sua boca nenhuma palavra de revolta, nenhuma palavra de rancor, nenhuma palavra de ódio. Apenas estas palavras: “Pai, perdoai-lhes, porque eles não sabem o que fazem”.
Nós que estamos revivendo o mistério da paixão do Senhor, vamos lembrar a sua palavra: Perdoar é querer bem ao outro, é amar aquele que nos maltrata, é amar aquele marido (esposa) que nos faz sofrer, é amar aquele filho ingrato, é amar aquele vizinho que nos prejudicou, é gostar bastante do outro, não querer mal a ninguém, é continuar fazendo o bem o mais que pudermos. “Com efeito, se amais os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem também os publicanos a mesma coisa? E se saudais apenas os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem também os gentios a mesma coisa? Portanto, deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 46-48).
Neste momento, voltemo-nos todos para a presença de Maria, a Mãe, que esteva de pé até à Cruz. Maria ficou no Calvário, não apenas assistindo no meio do público, mas em lugar de destaque, ao pé da cruz, ao pé do Redentor. E por isto Jesus a entregou ao discípulo amado, representando a comunidade Igreja que nascia do Mistério da sua Páscoa: “Mulher, eis aí o teu Filho! Filho, eis aí tua Mãe!” (Jo 19, 26-27).
Na hora de sua morte, Jesus Cristo se lembra de nos dar a sua mãe para que fosse também a nossa mãe, a mãe de toda a humanidade, de todos os povos, da Igreja inteira. Todos nós somos chamados a sermos filhos de Deus, a sermos filhos de Maria; Maria nos ensina ao pé da cruz, que devemos estar sempre à disposição de Jesus Cristo para ajudá-lo a salvar o mundo. Maria soube emprestar o seu ventre para que Jesus pudesse nascer. Ela nos convida a acolhermos Cristo dentro de nós para podermos torná-lo presente no mundo. Desta forma, aproximemos um pouco mais a imagem de Nossa Senhora das Dores.
Maria soube estar ao lado de seu filho sofredor, quando ele sentia só e abandonado. Assim, Maria nos ensina também a estar perto de cada irmão e irmã que sofre hoje. Maria nos ensina a estar perto do pobre, das pessoas marginalizadas, da pessoa solitária e desesperada; perto do doente e do preso, perto do condenado e do castigado. Maria nos mostra, assim, que devemos estar perto de cada Jesus que sofre sua paixão, hoje nesta terrível pandemia.
Que cada um de nós possa ser, perto daquele que sofre, a presença de Maria, que cada um de nós possa receber de Maria essa missão de continuar assistindo e sustentando os sofredores, principalmente as vítimas da violência. Que nós possamos receber de Maria essa sublime missão, de enxugar as lágrimas, o suor e o sangue de todos os “Cristos” que estão sofrendo pelo mundo a fora.
Ela permaneceu a vida inteira com o Filho, ela conhece seu coração. Ela está muito sofrida: viu o Filho amado ser torturado, humilhado, abandonado pelos amigos. Viu-o ser morto violentamente, sem nenhuma misericórdia. Ela está ferida no mais profundo de seu ser porque sofreu nas entranhas a dor do Filho. Maria está triste, sofrida, mas não desesperada. Ela não sabe, neste momento, ao certo o que acontecerá, mas conhece o coração do Filho e está cheia de esperança. Dizia Santo Agostinho: “Doía-lhe que tivesse sido morto injustamente Aquele a quem ela gerou virgem; mas esperava e cria firmemente que ressuscitaria ao terceiro dia, conforme o que fora prometido, vencida já a morte; entretanto, somente nela estava a fé da Igreja. Enquanto cada um vacilava e duvidava, ela, que com fé concebeu a fé, que uma vez recebeu de Deus e nunca a perdeu, com essa fé e com a esperança certíssima esperou a glória da ressurreição”.
Caminhemos mais um pouco com a imagem de Nossa Senhora das Dores até bem próximo da imagem do Nosso Senhor dos Passos. Jesus, eis tua Mãe, a Mãe das Dores, a Consoladora dos Aflitos, a Rainha dos Mártires. Ei-la que vem partilhar contigo o caminho da redenção e, ao fazer-se solidária contigo, nos confortar também a todos nós, os degredados filhos de Eva, e enxugar as lágrimas de tantos sofrimentos e os suores das lutas cotidianas. Jesus, eis tua Mãe. Fazei que aprendamos com ela a não fugir dos problemas, a encarar a realidade com lucidez, a descobrir o sentido redentor da cruz. Entrega-nos, mais uma vez a tua Mãe, como nossa Mãe terna e bondosa, para que ela nos ensine a sermos seus discípulos e continuadores de sua missão no mundo.
Maria é a Mãe da Igreja, porque, em virtude da inefável eleição do mesmo Pai Eterno e sob a particular ação do Espírito de Amor, Ela deu a vida humana ao Filho de Deus, “do qual procedem todas as coisas e para o qual vão todas as coisas”, e do qual assume a graça e a dignidade da eleição todo o Povo de Deus. O seu próprio Filho quis explicitamente estender a maternidade de sua Mãe — e estendê-la de um modo facilmente acessível a todas as almas e a todas os corações — apontando-lhe do alto da Cruz como filho o seu discípulo predileto. E o Espírito Santo sugeriu-lhe que permanecesse no Cenáculo, após a Ascensão do Senhor, também Ela, recolhida na oração e na expectativa, juntamente com os Apóstolos, até ao dia do Pentecostes, quando devia visivelmente nascer a Igreja, saindo da obscuridade.
E em seguida, todas as gerações de discípulos e de quantos confessam e amam Cristo — à semelhança do Apóstolo João — acolheram espiritualmente em sua casa esta Mãe, que assim, desde os mesmos primórdios, isto é, a partir do momento da Anunciação, foi inserida na história da Salvação e na missão da Igreja. Nós todos, portanto, os que formamos a geração hodierna dos discípulos de Cristo, desejamos unir-nos a Ela de modo particular.
Fazemo-lo, depois, impelidos por profunda necessidade da fé, da esperança e da caridade. Se, efetivamente, nesta fase difícil e cheia de responsabilidade da história da Igreja e da humanidade nós advertimos uma especial necessidade de nos dirigir a Cristo, que é o Senhor da sua Igreja e o Senhor da história do homem, em virtude do mistério da Redenção, estamos convencidos de que ninguém mais como Maria poderá introduzir-nos na dimensão divina e humana deste mistério. Ninguém como Maria foi introduzido nele pelo próprio Deus. Nisto consiste o carácter excepcional da graça da Maternidade divina. É de grande profundidade a participação de Maria no plano divino da salvação do homem, através do mistério da Redenção.
Este mistério formou-se, podemos dizer, sob o coração da Virgem de Nazaré, quando Ela pronunciou o seu “fiat” (faça-se). A partir daquele momento esse coração virginal e ao mesmo tempo materno, sob a particular ação do Espírito Santo, acompanha sempre a obra do seu Filho e palpita na direção de todos aqueles que Cristo abraçou e abraça continuamente com o seu inexaurível amor. E, por isso mesmo, este coração deve ser também maternalmente inexaurível. A característica deste amor materno, que a Mãe de Deus insere no mistério da Redenção e na vida da Igreja, encontra a sua expressão na sua singular proximidade em relação aos seres humanos e a todos as suas vicissitudes. Nisto consiste o mistério da Mãe. A Igreja, que A olha com amor e esperança muito particular, deseja apropriar-se deste mistério de maneira cada vez mais profunda. Nisto, de fato, a mesma Igreja reconhece também a via da sua vida quotidiana, que é todo o homem, todos e cada um dos homens.
Irmãos e Irmãos, eis Jesus e Maria unidos no caminho do Calvário. “A Mãe contempla o Filho; o Filho contempla a Mãe: estes dois olhares se fundem num só olhar; e estas dores se fundem numa só dor; e estes amores se fundem num só amor” (Dom José Belvino). Jesus e Maria se encontram porque, na realidade, nunca haviam se separado. Encontram-se porque ambos foram atraídos pela cruz da redenção. Encontram-se porque, na hora dolorosa do martírio, Jesus necessitava da companhia revigorante de sua Mãe. Encontram-se para ser um monumento erguido ao amor de Deus. É este o amor maior, o amor que dá a vida, o amor-renúncia, o amor-entrega, o amor doação. É este o amor que salva o mundo, o amor que nós queremos seja esculpido em nosso coração para mudar nosso jeito de ser e de conviver.
O encontro com Jesus e Maria é caminho de conversão: nasçamos para uma vida nova, deixemo-nos transformar por este encontro salvífico. O encontro com Jesus e Maria é caminho de comunhão: retiremos de nossa vida o pecado, a violência, o egoísmo, a maldade. O encontro com Jesus e Maria é caminho de solidariedade: sejamos presença de qualidade junto aos mais sofredores e necessitados. O encontro com Jesus e Maria é compromisso de buscar o Cristo vivo nos Evangelhos, na Palavra de Deus, nos sacramentos, sobretudo na Santa Missa, na vivência de fé em comunidade, valorizando a Igreja. O encontro com Jesus e Maria é compromisso de reconhecer a presença do Ressuscitado no rosto desfigurado dos mais pobres e excluídos.
“Buscai o Senhor, enquanto Ele se deixa encontrar; invocai-o, pois Ele está perto”. Irmãos e Irmãs, continuemos esta semana santa, acompanhando Jesus que Se dirige ao Calvário para sua entrega definitiva ao Pai. Renovemos no coração a esperança na vitória pascal do Senhor e a certeza de que com Ele também venceremos a dor, o sofrimento, as lutas e trabalhos da vida. Se com Ele sofremos e morremos, com Ele viveremos e ressuscitaremos.
Nossa Senhora das Dores, ajudai-nos no caminho da cruz. Sede nosso refúgio e consolação, força e coragem nesta difícil jornada da história da humanidade. Livra-nos de todo o mal. Rogai por nós Santa Mãe de Deus! Para que sejamos dignos das promessas de Cristo. Amém.
[1]Cirilo de Alexandria, Comentário sobre o livro de Isaías 4,4 (PG 70, 1.1066-1.1067).
[2] Papa Francisco, Fratelli Tutti, 226-230.
[3] São João Paulo II, Redemptor Hominis, 7